Febre eólica em território indígena colombiano – quais são as consequências?

A região de La Guajira receberá aerogeneradores em grande escala. O que acontecerá com as comunidades Wayúu?

Una de las palas de los aerogeneradores en construcción en el parque eólico Guajira-1, en Octubre 2021 | | Francesc Badia i Dalmases

Como enormes baleias brancas de cabeça vermelha encalhadas num deserto árido, jazem três pás de uma gigantesca turbina eólica que será montada na aldeia de Cabo de la Vela, na região de La Guajira, na Colômbia. Medindo 49 m de comprimento, cada uma faz parte de uma das dez novas grandes turbinas de 78 m de altura (equivalente a um prédio de 18 andares) que compõem o primeiro parque eólico a ser construído na Colômbia em 17 anos.

O parque, chamado Guajira I, propriedade da companhia hidrelétrica Isagén, será vizinho do parque eólico Jepírachi, propriedade da Empresas Públicas de Medellín (EPM), inaugurado em 2004 e pioneiro da energia eólica na Colômbia. Hoje, suas envelhecidas turbinas, perto do fim de sua vida útil, soltam um óleo escuro que escorre pelas torres, em forte contraste com a afirmação de ser uma fonte de energia "limpa". Em sua defesa, a EPM explicou que o parque eólico foi desenvolvido como um projeto piloto "cujo objetivo era aprender sobre a tecnologia, avaliar os benefícios do recurso disponível e entrar no campo das relações com a comunidade Wayuú".

As pás fabricadas pela Vestas, empresa dinamarquesa líder mundial em turbinas eólicas, foram descarregadas com o resto dos componentes em Puerto Brisa, em julho deste ano, um evento que contou com a presença do presidente Iván Duque, que anunciou que com este ato a região se tornava "a porta de entrada para energia renovável na Colômbia." "Vamos nos tornar os líderes da América Latina na transição energética”, acrescentou, visivelmente satisfeito.

Novo parque eólico Guajira I, em construção
Novo parque eólico Guajira I, em construção | Andrés Bernal

A aposta do governo colombiano nas energias renováveis é particularmente favorável aos negócios e ​​anda de mãos dadas com grandes investimentos associados à indústria eólica, que vive um boom atual diante da corrida mundial para descarbonizar a economia em uma tentativa de conter a atual crise climática. O parque eólico em construção faz parte de um plano de 16 parques eólicos já aprovado para La Guajira, algo que o ministro da Energia, Diego Mesa, inclusive vinculou à mineração de cobre, níquel, lítio, chumbo, ferro e zinco, em um vídeo postado no Twitter. Sem a mineração, "a instalação e operação de turbinas eólicas seria impossível", afirmou.

Parque eólico Jepírachi
Parque eólico Jepírachi | Andrés Bernal

O plano energético que o governo vem implementando inclui, além de promover a mineração, uma forte reativação do setor de hidrocarbonetos, já havendo conquistado dezenas de contratos de exploração e produção. A realidade contrasta com a pressa da comunidade internacional em abandonar os combustíveis fósseis com o fim de retardar os efeitos devastadores das mudanças climáticas.

Mas a iminência da extinção humana não é igual para todos. Diante de uma ameaça causada por um dos efeitos colaterais do combate às mudanças climáticas, as comunidades Wayúu de Cabo de la Vela e Media Luna, no norte de La Guajira, não enxergam esse medo como sendo abstrato. “Nos vemos à beira da extinção”, Nancy Gómez, líder ambiental indígena da comunidade Cabo de la Vela, sobre o impacto dos parques eólicos nas comunidades indígenas.

Nancy Rodríguez, líder indígena Wayuú, espalhando café
Nancy Rodríguez, líder indígena Wayuú, oferendando café em um cemitério ancestral perto de Cabo de la Vela | Andrés Bernal

Nancy lembra o que aconteceu com suas comunidades irmãs quando, há mais de 30 anos, foi inaugurada a gigantesca mina de carvão a céu aberto Cerrejón, também em La Guajira, recentemente adquirida pela multinacional Glencore por US$ 588 milhões. O megaprojeto de extração mineral é uma cicatriz na região devido à sua polêmica história e impactos socioambientais, que hoje nos permitem imaginar as consequências de uma nova febre energética.

A experiência de Cerrejón deixou feridos e conflitos na comunidade Wayúu, que viram as compensações prometidas pelo mineiro desaparecerem sem deixar vestígios enquanto os impactos negativos continuam se proliferando. Ainda assim, a mineradora se defende, afirmando ter “cumprido com a implementação do Plano de Mitigação de Impactos Imediatos, havendo completado 95,2% do plano”.

Os Wayúu têm uma ligação histórica com essa terra que abriga seus ancestrais, cujo papel é central na vida espiritual dessas comunidades. Nancy Gómez lembra com amargor o que aconteceu a uma comunidade vizinha da mina de Cerrejón, que os obrigou a deslocar seu cemitério ancestral, uma violação intolerável para os Wayúu.

Túmulo ancestral em um cemitério Wayuú perto de Cabo de la Vela, La Guajira, Colômbia
Túmulo ancestral em um cemitério Wayuú perto de Cabo de la Vela, La Guajira, Colômbia | Andrés Bernal

As empresas eólicas estão satisfeitas com os acordos alcançados após processos de consulta prévia que, no entanto, têm sido muito questionados por, entre outras coisas, fragmentar comunidades que estão intimamente interconectadas, como mostra o relatório "O vento do leste chega com revoluções", publicado em dezembro de 2019 pela fundação Indepaz.

As empresas agem como se a compensação oferecida sob a forma de royalties fosse a solução, ignorando que a relação dos indígenas com o território é radicalmente diferente da das sociedades urbanas, onde o território é uma mercadoria a ser comprada e vendida. Para os povos indígenas, o território é parte integrante da comunidade e de sua própria identidade. Para eles, os parques eólicos violam o vento, que é sagrado para a cosmogonia Wayúu, encarnado pela divindade Jouktai.

Nancy Gómez está pessimista. Ela afirma que, com a chegada dos grandes parques eólicos, não há futuro para as comunidades Wayúu. “Nosso território não tem preço. Eles podem nos dar todos os milhares e milhões que continuará sendo nada. Nossa riqueza está na terra. Nossa riqueza está no mar. Nossa riqueza está no ar. Como podemos abrir mão do que é nosso? Como vamos permitir que eles venham e nos enganem assim, falando sobre desenvolvimento?"

Território ancestral Wayúu no norte de La Guajira, na Colômbia
Território ancestral Wayúu no norte de La Guajira, na Colômbia | Andrés Bernal

De Bogotá ou Medellín, a visão que as elites empresariais têm dos “guajiros” está carregada de preconceitos racistas. Os consideram violentos, rebeldes, ignorantes e ladrões, com muitos argumentando que La Guajira está em estado de miséria porque os Wayúus roubaram as indenizações da mina Cerrejón, e que o mesmo acontecerá com os parques eólicos. Mas enquanto a região passa fome, a linha do trem, que tem mais de 120 vagões e percorre 150 km transportando cerca de 108 mil toneladas de carvão diariamente para Puerto Bolívar, está em perfeitas condições de funcionamento..

Junto aos trilhos do trem, a população vive em estado de extrema pobreza. Evidente pelos níveis de desnutrição infantil, a população passa fome e sede, visto que grande parte de La Guajira é árida. Não há linhas de transmissão de energia, e as estradas estão em um estado lamentável, sendo intransitáveis ​​quando chove.

Criança indígena Wayúu em Cabo de la Vela
Criança indígena Wayúu em Cabo de la Vela

Diante dessa situação de abandono, inexplicável em um país membro da OCDE, o governo vem implementado alguns esforços para mitigar a falta de água por meio do plano Guajira Azul, com o qual espera aproximar-se de 49% de cobertura num território onde, segundo o próprio plano, "a cobertura rural de água é de 4% no Alto Guajira, e mulheres e crianças percorrem uma média de 7 km em busca de água de qualidade deficiente e imprópria para o consumo humano". E isso, como aponta a pesquisadora Joanna Barney em artigo recente publicado pelo Indepaz “sem que uma única gota de água chegue a qualquer casa”.

Tudo indica que a implantação dos 16 parques planejados em La Guajira já seja imparável: a energia renovável é a aposta estratégica para o futuro da região latino-americana, que espera que 70% da energia gerada seja renovável até 2030. Mas sua implantação se vê conflituosa, tanto pelos antecedentes deixados por Cerrejón, quanto pela evidente ausência do Estado colombiano em grande parte deste território. Essa ausência é especialmente crítica na fronteira com a Venezuela, onde veículos da empresa muitas vezes precisam ser escoltados por militares, devido ao medo de assalto ou sequestros.

Mulheres carregando água de manhã cedo em Caio de la Vela
Mulheres carregando água de manhã cedo em Caio de la Vela | Andrés Bernal

Mas, apesar de todos os problemas e conflitos com os Wayúu, os parques entrarão em operação de forma gradativa nos próximos anos. Infelizmente, em um claro exercício de racismo ambiental, o projeto não levou em consideração o respeito ao ecossistema e seus habitantes. Um exemplo é a instalação prevista de parques perto de cemitérios indígenas sagrados, como explica Wilmer Igurán, etnoeducador e membro do clã Uriana.

Diante das demarcações feitas por uma empresa a poucos metros do cemitério comunitário, Wilmer afirma que “quando o falecido é incomodado, ele busca uma forma de se vingar. Nós não podemos dizer (à empresa): não, não vai acontecer nada com você, porque isso não depende de nós”. Sobre esse tipo de demarcação, um porta-voz da EPM afirmou que existem outros atores envolvidos na equação, como as empreiteiras que realizam as diferentes atividades de campo. É possível que em algum momento tenha ocorrido algum problema com uma comunidade, mas não pode ser generalizado.

Wilmer Igurán dando aula na escola da comunidade de Ipapure, em La Guajira
Wilmer Igurán dando aula na escola da comunidade de Ipapure, em La Guajira | Andrés Bernal

José Brugues Pushaina, líder da comunidade Kashiworin, cuja aldeia fica a menos de 200 m do parque, não parece concordar com essa afirmação e não vê benefício mútuo em parte alguma. “Pelo que vejo, a região vai estar repleta de parques eólicos. E é uma tristeza ver que nossos conterrâneos, nossos povos indígenas, se deixam enganar por uma ninharia. (...) Em 20 anos eles vão retirar os moinhos e nós estaremos na mesma situação. (...) Supostamente, eles vêm para ajudar, mas até parece”. A EPM discorda de José, afirmando ser “necessário mencionar ações como o abastecimento de água potável através da instalação de uma dessalinizadora, a contribuição para a educação dos habitantes locais, o sistema de transporte, o apoio à pesca artesanal e uma série de atividades que beneficiam o coletivo”.

As turbinas e sua infraestrutura também têm impacto sobre a biodiversidade local. La Guajira é rota de aves migratórias, que verão suas rotas alteradas, e de morcegos, cujo sistema de navegação por ondas é seriamente afetado pelas turbinas.

Além de prejudicar sua navegação, os parques eólicos também causam a morte desses mamíferos voadores, que têm um papel central no ecossistema. Os morcegos são responsáveis ​​pela polinização do cardón, cacto onipresente no território e fundamental para a sobrevivência dos Wayúus. Além disso, os morcegos carregam um grande número de vírus, incluindo coronavírus. Alterações em seu ecossistema aumentam a possibilidade de os vírus chegarem aos humanos, como a OMS sugere poderia ter acontecido com o SARS-CoV-19, causa da pandemia de Covid-19.

Talita, líder indígena Wayúu, em um cemitério ancestral próximo a Cabo de la Vela
Talita, líder indígena Wayúu, em um cemitério ancestral próximo a Cabo de la Vela | Francesc Badia i Dalmases

As energias renováveis ​​são parte da solução para a crise climática e devem ser implementadas de forma estratégica e sem demora, mas não sem levar em consideração os impactos sobre os ecossistemas e as populações dos territórios afetados. O caso da Guajira colombiana é paradigmática: nos próximos anos, a região receberá um alto volume de turbinas eólicas, mas nem o governo nem as empresas parecem preocupados com os riscos que acarretam para as comunidades indígenas, que continuarão a assistir impotentes à chegada desta infra-estrutura estratégica. Dessa forma, os novos parques parecem seguir o velho modelo extrativista de Cerrejón, enquanto as populações locais permanecem afincadas na pobreza extrema, apesar dos generosos royalties prometidos.

Notícia publicada originalmente em: https://www.opendemocracy.net/pt/febre-eolica-guajira-colombia-indigenas-wayuu/

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