Cuité: mais um foco de resistência à indústria da energia centralizada na Paraíba

Mais um município da Paraíba resiste à pressão das empresas de energia eólica: Cuité, no território do Curimataú ocidental. Mais precisamente o assentamento Brandões 1, 2 e 3, que fica no limite com o Rio Grande do Norte. Lá, as 100 famílias têm dito NÃO ao intenso assédio da empresa Casa dos Ventos para a instalação das torres eólicas.

Fundamental para essa posição coesa foi um processo de estudo participativo com metodologia científica que ouviu a comunidade e, sobretudo, promoveu acesso às informações sobre os danos que esses empreendimentos provocam nas comunidades onde se instalam. Trata-se da pesquisa “Indicadores de Pressão, Estado, Impactos e Resposta (Peir) nos Assentamentos dos Brandões: uma abordagem integradora, participativa e sustentável para análise e conhecimento da realidade local”, desenvolvida pelos professores Ricélia Marinho e Gustavo Sales, da Universidade Federal de Campina Grande.

O resultado desse estudo foi apresentado publicamente no dia 19/08 na audiência pública “Danos socioambientais causados por usinas de energias renováveis na Paraíba”, em Cuité. A audiência municipal foi defendida pela Comissão Pastoral da Terra ao vereador José Evanuel Moreira Bezerra, que propôs na pauta da Câmara dos Vereadores, tendo sido aprovada por unanimidade. A iniciativa faz parte da estratégia traçada pelo projeto Força dos Ventos executada pela CPT, AS-PTA e Polo da Borborema com parceria da ActionAid.

Segundo Vanúbia Martins, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o objetivo da audiência foi dar visibilidade aos danos provocados por esses empreendimentos que, não por acaso, são omitidos do discurso das empresas. Afinal a narrativa das empresas tem ampla divulgação na grande mídia, nossa tarefa a partir da pesquisa é trazer o contraditório.

Foi recorrente a afirmação de que as comunidades precisam ter acesso a todas as informações e dados relacionados à instalação das indústrias energéticas nas suas áreas para que tomem suas decisões com clareza e consciência dos riscos e vantagens.

“A questão principal gira em torno do conhecimento e debate, livre e democrático, sobre os danos”, defende o professor Gustavo Sales. “As comunidades precisam tomar suas decisões a partir de dados gerados por ela mesma”, defende ele a partir da experiência da metodologia participativa, na qual, por meio da cartografia, os/as moradores/as perceberam melhor o espaço do assentamento e puderam discernir melhor sobre o impacto do empreendimento sobre a terra deles.

Um dos dados apresentados na audiência foi de que 38% das famílias de Brandões tinham muita dúvida sobre a decisão a tomar por não ter noção do quanto a sua vida ia mudar. “As pessoas perguntavam se eram obrigados a aceitar essa produção de energia na terra deles”, conta a professora Ricélia Marinho.

“Precisamos conversar mais sobre o tema para esclarecer a população”, salienta ela. “Não há dúvida que essa energia é fundamental, mas de que forma? Pra que é produzida e para beneficiar a quem?”, indaga o professor Gustavo.

Do ponto de vista jurídico, o advogado Claudionor Vital ressalta que um dos direitos violados da população nessa forma de atuação das empresas, sob anuência dos governos, é o direito à informação. Segundo ele, já existe na legislação a defesa desse direito, mas nas leis ambientais há uma norma específica que assegura ao público o acesso a dados de órgãos da área.

“Mas esses dados não estão chegando às comunidades, quando as empresas chegam nelas. São dados técnicos como a dimensão das áreas, os impactos socioambientais, a quantidade de torres que serão instaladas. Sem isso, é muito difícil decidir”, pontua Claudionor.

Na audiência, houve a participação também de uma representante do Polo da Borborema e da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. O Polo tem mobilizado, a partir das mulheres agricultoras, o movimento de resistência à instalação das indústrias energéticas no território da Borborema. No início de maio passado, levou às ruas cerca de quatro mil mulheres que ecoaram nas ruas de Solânea – um município com pouco mais de 26 mil habitantes – um sonoro NÃO ao modelo centralizado de energia.

No final de uma fala emocionada e segura, Rose convocou as famílias de Brandões para seguir resistindo juntos às famílias da Borborema. “Resistindo aos contratos abusivos… Nós temos a força, a terra e não podemos entregá-la para que nossos modos de vida sejam privatizados”, anuncia.

Em seguida, foi a vez do anúncio do modelo de produção de energia que as comunidades rurais defendem. O porta-voz do jeito descentralizado de produzir energia tem sido o Comitê de Energia Renovável do Semiárido (CERSA), que possui vários projetos em andamento que comprovam a viabilidade desse formato, gerando riqueza para a comunidade.

“Assim como a ASA defendeu no fim dos anos de 1990 a implementação de um milhão de cisternas de placas de cimento, nós pleiteamos a instalação de cinco milhões de placas solares nos telhados das casas rurais do Semiárido”, coloca José Anchieta de Assis, que viajará no mês que vem para a Alemanha representando o CERSA para conhecer as experiências do país europeu na produção de energia descentralizada.

Na audiência, duas pessoas da comunidade deram seus depoimentos. Everaldo Cassiano e José Roque Ferreira. Ambos destacaram o esforço para conquistar a terra, ter condições para plantar e vender o excedente. “Depois de 19 anos, nós quitamos o financiamento pelo crédito fundiário de 23 anos que fizemos para comprar a terra. Depois de pagar, vamos ser escravos novamente? O que as empresas nos oferecem é um contrato de 49 anos. Vou fazer 49 anos no domingo que vem [no dia 21 de agosto], vou esperar por mais 49 anos? E é um contrato que pode ser renovado automaticamente.”

E Everaldo segue salientando outras questões como a proteção da vida dos animais. “Hoje, o assentamento tem um reserva legal de 600 hectares onde estão refugiados os animais, que ficam em situação de risco porque essa área é a menina dos olhos da empresa.” Essa região fica nas áreas mais altas do assentamento.

Já José Roque Ferreira começa sua fala lembrando que, antes de se firmar no assentamento Brandões 3, “vivia com as ferramentas de pedreiro de um lado para o outro. Hoje, me encontro no assentamento e já faz 19 anos.”

Entre uma fala e outra, Vanúbia, da CPT, e que vem acompanhando o assentamento Brandões, pinça algumas questões que tem a ver com o impacto invisível do empreendimento para a população não só do assentamento, mas do município.

“A geração de energia renovável é um discurso global, mas precisamos pensar no local, porque o povo de Cuité bebe a água de Cuité. Não adianta de nada tirar as árvores da Paraíba e plantar na Bahia. Implantando as torres nas áreas de topos, onde as águas se infiltram no solo quando há vegetação, o que será das nascentes de água que abastece a população de Cuité?”

E acrescenta: “Qual o dinheiro que vai comprar a saúde mental das mulheres do assentamento?, diz referindo-se às doenças associadas aos parques eólicos já conhecidas da literatura médica como Síndrome da Turbina Eólica.

Essa Síndrome é provocada pela emissão de ruídos não captados pela audição humana, mas que geram infrassons cuja vibração constante e de longo alcance – até 15 quilômetros de distância – é causadora de danos muito complexos à saúde, como a produção de níveis de colágenos muito acima dos normais criando fibroses nos órgãos dos sistemas cardíaco e respiratório.

Na audiência, também estavam presentes representantes das empresas de energia renovável que estão na região. Um deles fez uma fala reforçando o semiárido nordestino como lugar sem alternativa e muita pobreza. Repetindo um discurso muito antigo que busca invisibilizar as comunidades de agricultoras, tradicionais e os povos indígenas que vivem nesses ambientes.

Mas, esse discurso perde sua força facilmente quando se comprova a produção de alimentos desses territórios, como no Assentamento Brandões, onde as famílias conseguiram um rendimento de R$ 35 mil por ano ao produzir e vender só o excedente dos alimentos nos programas públicos de compras de alimentos da agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Não falta alimento, não falta renda todo tempo, não falta captação de carbono pois, a pesquisa nos mostrou que são as famílias camponesas quem preserva a serra de Cuité e todas as serras da Paraíba. O que nos falta é uma politica energética justa e popular para campo e as periferias das cidades.

Notícia publicada originalmente em: https://aspta.org.br/2022/08/28/cuite-mais-um-foco-de-resistencia-a-industria-da-energia-centralizada-na-paraiba

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