A evolução conservadora da energia solar no Brasil

Por Clarisse Ferraz – O Ministério de Minas e Energia (MME) publicou a Portaria nº 236 (DOU, 30 de maio de 2014) que define as regras para o próximo Leilão de Energia de Reserva a ser realizado no dia 31 de outubro. O Leilão está sendo muito noticiado pois irá contratar eletricidade gerada pelas fontes solar fotovoltaica, eólica e biomassa (resíduos sólidos urbanos e/ou biogás de aterro sanitário ou biodigestores de resíduos vegetais ou animais, assim como lodos de estações de tratamento de esgoto). Foi determinado que os contratos terão duração de 20 anos e início de suprimento em 1º de outubro de 2017.

Ao contemplar fontes renováveis de energia que até então não lograram uma efetiva participação na matriz elétrica do País, o MME as fortalece e envia o sinal de que prioriza uma matriz limpa e diversificada. Várias associações de representantes das indústrias associadas às cadeias de valor das fontes supracitadas se mostram otimistas. No caso da energia solar fotovoltaica, o entusiasmo é grande. Com a redução dos preços dos sistemas fotovoltaicos e o estabelecimento no certame de preços teto compatíveis com seus custos, há grandes chances de usinas solares saírem vencedoras do Leilão.

Desse modo, atores ligados ao setor esperam que, a exemplo do que aconteceu com a energia eólica, o Leilão seja o ponto de partida de uma trajetória de rápido crescimento e desenvolvimento da indústria solar fotovoltaica no Brasil. Além disso, há notícias de criação de linha de financiamento especial do BNDES para a energia solar fotovoltaica, aos moldes do financiamento criado para a estimular o desenvolvimento da indústria eólica no País, o Finame.

Se podemos nos felicitar dessa iniciativa, não há como não lamentar que o anúncio da abertura do setor elétrico para as usinas solares não seja acompanhado de incentivos à microgeração. Afinal, como discutido em diversas postagens anteriores, é nessa modalidade que a energia solar fotovoltaica exprime todas suas vantagens e se mostra competitiva com as demais fontes de eletricidade que chegam via distribuidora. Ao ser gerada no local de consumo, ela evita custos de transporte e distribuição, assim como as perdas técnicas a eles associadas, estimadas em 15.9 % em 2012 (EPE 2013: 30). Entretanto, existem diversos obstáculos à sua difusão.

Ao ignorar as necessidades de combater os entraves ao desenvolvimento da microgeração, o governo aposta na continuidade do modelo de setor elétrico baseado em grandes empreendimentos de geração. Ora, nessa configuração, a solar fotovoltaica não é competitiva e sabemos que o setor elétrico sofre com a disparada de seu custo marginal de expansão. Seus preços são superiores aos da eletricidade oriunda das grandes hidrelétricas, parques eólicos ou mesmo de centrais termelétricas modernas. Outra limitação desse modelo é a ausência de alívio à crise do sistema no curto prazo. Usinas de energia solar de grande porte, para serem integradas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), terão que enfrentar as mesmas restrições que as demais fontes, em particular os gargalos de transporte e de distribuição que tem prejudicado a integração bem sucedida da geração eólica e comprometido a modicidade tarifária.

O caso da energia eólica deveria servir de exemplo. A já conhecida complementaridade hidro-eólica foi seriamente limitada pela falta de linhas de transmissão capazes de integrar a energia eólica ao SIN. Levantamento realizado em fevereiro deste ano apresentava balanço de 48 usinas eólicas operacionais, totalizando 1.264 MW de capacidade instalada, sem conexão com o SIN. O atraso médio das conexões é de 20,75 meses, caso os novos prazos de entrada em operação sejam cumpridos[1]. Os projetos de grande porte precisam inexoravelmente estar coordenados com a expansão adequada da malha de transporte e distribuição do setor elétrico.

Assim, é através da difusão da microgeração que o setor elétrico teria melhorias de curto prazo[2] e que a fonte solar fotovoltaica aportaria maiores benefícios. Em postagem anterior, vimos que a difusão da microgeração de origem fotovoltaica tinha duas principais barreiras: a falta de conhecimento dos consumidores, habituados a receber a eletricidade via distribuidora, e o preço de instalação dos sistemas fotovoltaicos. Para superar essa barreiras seriam importantes acesso ao crédito e redução de impostos incidentes sobre as diferentes etapas da cadeia – além de combater as distorções provocadas pela incidência do ICMS sobre o consumo de eletricidade oriunda da distribuidora, sem que a eletricidade injetada de retorno na rede seja contabilizada. Nenhum desses entraves foi combatido.

Deveríamos ter assistido à uma revisão da carga tributária e o acesso ao crédito facilitado. Este, poderia, ocorrer através da criação de condições mais favoráveis de financiamento aos microgeradores, via Caixa Econômica Federal (CEF). O Banco já possui diversos produtos financeiros destinados ao setor residencial como o Minha Casa Melhor ou o Construcard, bastaria expandir o limite e passar a contemplar a aquisição de sistemas fotovoltaicos. Em abril deste ano, Mara Luísa Alvim Motta, Gerente Executiva de Responsabilidade Socioambiental da CEF, chegou a anunciar que o banco já havia estudado a questão a partir da edição da Resolução da Aneel n° 482/2012 e que, em breve, deveríamos assistir ao seu lançamento. Entretanto, até hoje nada foi concretizado. Ao combater as barreiras à difusão da microgeração solar fotovoltaica, o governo estaria reduzindo a pressão sobre o SIN e, ao mesmo tempo, promovendo uma importante medida de eficiência energética.

Desse modo, o próximo Leilão de Reserva representa importante avanço para o setor fotovoltaico pois, em caso de sucesso, garante demanda em larga escala de componentes dos sistemas fotovoltaicos, com importantes economias de escala, além de incentivos para o desenvolvimento de uma indústria nacional, caso novos leilões sejam anunciados. Infelizmente, para o setor elétrico, os ganhos serão limitados.

Nos resta torcer para que nossos tomadores de decisão não restrinjam o planejamento do setor elétrico à busca da expansão da oferta através de empreendimentos de larga escala. Essa visão conservadora, além de menos sustentável se revela mais onerosa. Mesmo que possa parecer paradoxal, o planejamento e o despacho centralizados são perfeitamente compatíveis com maior participação de geração descentralizada, sobretudo oriunda de micro empreendimentos. Desprezá-los é sem sombra de dúvida um grande equívoco. O marco regulatório precisa ser revisto para ajudar a superar as barreiras regulatórias que impedem uma bem sucedida integração entre a microgeração e a geração centralizada.

Referências:

Empresa de Pesquisa Energética, 2013, Balanço Energético Nacional 2013 – Ano base 2012: Relatório Síntese. Disponível em: https://ben.epe.gov.br/downloads/S%C3%ADntese%20do%20Relat%C3%B3rio%20Final_

Price, B. A., van der Linden, J., Bourgeois J., Kortuem, G.,2013, “When Looking out of the Window is not Enough: Informing The Design of In-Home Technologies for Domestic Energy Microgeneration”. ICT4S 2013: Proceedings of the First International Conference on Information and Communication Technologies for Sustainability, ETH Zurich, Fevereiro 14-16, 2013.

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[1] Ferraz, C., Brasil Energia, agosto 2014.

[2] Além da redução de consumo devida à auto-geração em si, reduzindo a carga do sistema, diversos estudos tem revelado mudança de comportamento de consumidores de eletricidade que se tornam microgeradores. Sabe-se que um dos problemas subjacentes ao relacionamento das pessoas com a eletricidade é a invisibilidade da energia, que dificulta a construção de um relacionamento com o uso de energia. Como os microgeradores devem instalar medidores que revelam seus níveis de geração e de consumo da rede eles passam “a ver” suas necessidades de eletricidade e passam a consumi-la de maneira mais eficiente. Um estudo inglês revelou que 88% dos consumidores que havia instalado sistemas de microgeração alteraram seu comportamento para reduzir o consumo de energia após a instalação (incluindo mudanças de estilo de vida e as medidas tradicionais de economia de energia) (Price, van der Linden, Bourgeois e Kortuem, 2013)

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